segunda-feira, 3 de abril de 2023

tormenta (ou) previsões para o homem do rosto cansado

 


o sol foi embora

e a noite cai sobre a cidade

escuto alguém assobiando uma canção

passos nos paralelepípedos e música

ressoam na rua escura

é apenas mais um rosto cansado

voltando para casa

 

e ao chegar lá

abrirá a porta e olhará

para o espaço vazio sobre a mesa de canto

— ali ele guardava seus sonhos

dentro da caixinha de madeira –

irá até a cozinha e abrirá a porta da geladeira

pegará uma cerveja e a despejará no copo

voltará para a sala

as luzes continuarão apagadas

acenderá um cigarro

cinzas cairão no chão

sem que ele se importe

e sentado

se lembrará dos sorrisos e gargalhadas

mas coisas mudaram

perceberá então

que ele mesmo demorou para se reconhecer

naquele velho refletido no espelho

os ombros caídos

derrubados pelo tempo e solidão

então

olhará pela janela e lá fora

a rua mal iluminada pelas fracas lâmpadas dos postes

trará lembranças de sua juventude

dos tempos das cantigas de ninar embalando sua criança

do vento no rosto

em que nada era determinado

e assim sentado — olhando para a rua –

seus olhos procurarão pelos vaga-lumes

mas vaga-lumes não existem mais

acenderá outro cigarro

passará as mãos pelos cabelos

tentando encontrar a si mesmo

ou ao menos o exato momento em que se perdeu

quando se transformou em pedra e não sangrou

e ele segura o cálice com o líquido já quente

— do qual beberá até a última gota –

aguçando os ouvidos e tentando ouvir cigarras tardias

— desencanto –

cigarras não existem mais


© 2023 do autor

reprodução integral ou parcial permitida desde que citada a fonte

cálice

retirado dainternet

25 comentários:

Nadia Coldebella disse...

Poxa vida! Espero que o entardecer da minha vida não seja tão triste!
Mas se for, espero ter versos tão gentis, embora nostálgicos, me esperando nas palavras de alguém.
Um grande abraço!

Anônimo disse...

PERFEITO. O tempo passou...caindo a ficha.

Anônimo disse...

Excelente texto!

Anônimo disse...

Amei!

Carlos Eduardo disse...

Grande Mago.
Pensei que ao ler CADÁVER, eu estivesse lendo o que de mais profundo e tortuoso poema seu. No entanto, este, é macabro, triste, desesperançado, vai nos destruindo linha a linha. Grande e mórbido poema, escrito por um poeta maior.

Verinha disse...

Bela reflexão...o tempo passa...aceitemos a realidade! 👏😊

Anônimo disse...

Um mergulho na solidão e abandono. Linda reflexão.

Anônimo disse...

Poético, um tanto assustador enxergar este momento, gostaria de ler suas palavras com mais paixão pela vida!!
Mas ainda assim gosto desta visão do poeta Branco 👍

Anônimo disse...

Traduz a angústia do existir

Anônimo disse...

Gosto de ler você e suas entrelinhas.
O duplo sentido, o subentendido poesia de gente grande.
A cerveja que no verso final se transforma em líquido (vinho?), o copo que se transforma em cálice, e se formos atentos veremos que no ínio existe o caminhante (via crucis?).
Amargurado e irrefutável prova dos motivos que te fazem tão arredio.
Parabéns por mais esta grandeza compartilhada.
Alcir

sergio geia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
sergio geia disse...

Meu querido poeta, que prazer desfrutar de sua poesia hoje. Embora triste, bem triste. Mas a vida é feita só de belezas? Que bom existir a palavra que, em modo de poesia ou crônica, atenua as nossas dores.

P.S: mania de não ler depois de escrever. Retificada a falha rsrs

Walter disse...

Como sempre, um texto reflexivo e visual. E o estilo e seguranca próprios de quem sabe o chão onde pisa.

Maria Paula dos Santos disse...

A solidão da personagem é tão latente que doeu em mim. Uma beleza angustiante.

Anônimo disse...

Estas linhas sobre o entardecer da vida e a percepção triste de que o tempo passa e não podemos recuperar 👏🏾

Salete Bizarria disse...

Linda reflexão, grande poeta.

Anônimo disse...

O desamparo onde o passado é juiz de tudo.

Anônimo disse...

Quando me disserem que são os bons momentos que ficam, vou mostrar essa poesia. Uma bela reflexão sobre o envelhecimento, arrependimentos e solidão. Obrigada por compartilhar.

Marcelo Doceria disse...

Um verdadeiro show. Parabéns!

Camilian disse...

Muito lindo! O tempo passa e temos que viver, pois só se arrepende daquilo que não foi feito.

Marcus Vinicius Soares disse...

Através de uma poesia visual onde cada descrição vem carregada de significados, é impossível não parar e aplaudir. Você, como ninguém, passeia pela tênue linha entre o extraordinário e o piegas, no entanto, jamais se deixa seduzir por truques baratos. Você é grande poeta!

Anônimo disse...

Puxa, My Lord, eu li ontem, só hoje pude me 'desimpactar' do seu poema e tentar escrever alguma coisa. Poesia linha a linha, de ponta a ponta, de desnudamento em desnudamento, resta menos que um rosto cansado, restará a tristeza pelo ocaso de uma vida que poderia ter sido e não foi, ou que foi mas não é mais e não se.renovou. pq tem uma hora que não só o rosto, mas a alma fica cansada, né?. Esperemos um final de vida menos...Enos assim. Fantástico poema.

Mauro Barbieri disse...

Como sempre, arrasando.

Carla Dias disse...

Branco, sempre bom ler seus poemas. Este me deu uma agoniada. Pensar a pessoa, o tempo dela e tudo o que ela pode fazer de bom e de ruim, o quanto disso é para o mundo e não somente o dela. Refleti junto. Deu medo e depois deu alívio. Pensar a respeito ensina importâncias. Beijos e obrigada por me ajudar a pensar.

Alexandre Silva disse...

reflexão, de quão efêmero são os sonhos perante as realizações.