segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

duas torres _^_ branco



prólogo


no início

as águas

 morna e confortável

o alimento na água

uma ligeira perturbação

e fez-se a luz!


I


a primeira das eras

era a da inocência

um animal

quatro torres o sustentam

tempos de alegria

— necessidades supridas 

e a confiança gentil

sábios momentos

deliciosa sonolência

e o premente desejo de evoluir  sem saber  

repentinamente

duas torres destruídas

 surge o homem  

e ele 

com o olhar perdido na paisagem agora  para ele  diferente

mas ainda bela


e ventos se abateram

sobre a terra

causando pequenas mudanças

no que havia antes


II


uma mudança tranquila e chega


a segunda era

era a das descobertas

não mais olhar a paisagem

mas sim entrar na paisagem

 paradoxo

estar na paisagem

sem ainda fazer parte dela  

e sobre suas duas pernas

caminhar

descobrir  uma surpresa a cada olhada  

gestos

ações

sorrisos

delicia das flores

 ainda não conhece os espinhos  

descobrir-se e tornar-se íntimo

de sua própria natureza


mas ventos  agora mais fortes 

 sopraram sobre aquela terra

modificando outras coisas 

do que havia antes


III


as nuvens presenciaram a chegada da


terceira era

era a da assimilação

o homem 

ainda se lembrava de seus antepassados

 afinal

eles eram recentes  

e assimilados esses ensinamentos

aplicava-os na sua própria evolução

sabia das delícias

 ele mesmo as havia experimentado 

e agora sabia dos espinhos

 havia se ferido em alguns  

sabia que o seu surgimento

coincidentemente se dera 

com o das duas torres

 o que o tornava superior às outras criaturas  

teve poucos momentos de sábia reflexão

  e muitos de tola reflexão  

e ainda aprendendo

pensou 

e ficou feliz em existir


uma tempestade  forte e súbita  

caiu sobre aquela terra

encobrindo grande parte

do que havia antes


IV


assim teve início


a quarta era

era a da inquietação

lembrava-se vagamente das histórias

de seus antepassados

e sobre suas duas pernas

andava sobre lama e escombros

sentia inquietude

pelo seu próprio futuro

consciente e inconsciente

racionalizava os instintos

conheceu a curiosidade

e com ela a vontade de saber

sobre toda a sua existência

e sobre a existência de outras tribos e torres

existiriam outras tribos e torres

além de suas duas torres?

saiu em busca

 aflito

esperançoso

e apressado  

procurando por toda a extensão da terra


uma brisa suavizava o sol

que secava a lama daquela terra

restaurando algumas coisas

do que havia antes


V


bebidas e dança saudaram a chegada d'


 a quinta era

era a do amor

 recordações ainda mais vagas de seus antepassados

e de sua procura 

conheceu novas tribos

que tinham  cada uma 

suas próprias torres

dançou com elas ao redor do fogo

ao som de pandeiros e violas

bebeu com eles

fez-se um deles

 afinal 

eram seus semelhantes  

e finalmente conheceu a deusa

e se mostrou a ela

e ela a ele

ela também mostrou

as luas mais brilhantes

os sóis mais ofuscantes

e as estrelas mais belas

e ela ensinou a ele

sobre o vento e a chuva

o fogo interno intenso

bem como as coisas do místico

e o porquê das folhas caírem no outono

e enquanto aprendia

ele oferecia  em sacrifício - 

 flores da primavera

ela contava — e ele também contou  

historia de seus povos

de seus antepassados  os dele viram subitamente visita-lo  

para após

caírem em quietude amorosa


trovões e relâmpagos  estes transmutados em fogo  

caíram dobre aquelas terras

destruindo tudo

que havia antes


VI


desta maneira teve início


a sexta era

era a do conhecimento

acompanhado por sua história

— e a de outros povos 

ergueu-se sobre suas duas pernas

e dirigiu-se em silêncio

para a montanha mística

em meditação conheceu-se 

em quase plenitude

sabia agora

sobre ventos

chuvas

sóis

luas

e estrelas

sobre flores e espinhos

 afinal

havia experimentado tudo isso  

também sabia sobre o amor

 e a perda 

sabia que finalmente era parte da natureza

 ele era a própria natureza 

sabia mais

a história sobre trovões e relâmpagos

 de um antepassado recente  

sentiu-se forte  como acreditava que seus antepassados deveriam ser  

e mesmo sendo parte 

do todo

sabia-se ser o mais poderoso

protegido pelas duas torres

tinha o poder de decidir

sobre si e sobre outras tribos

tinha sobre o seu jugo

o natural e o mineral

o amor e o ódio

o perdão e o rancor

deusas o decepcionaram

procurou meditar sobre algo além dos deuses

e a esta meditação

dedicou o restante do seu tempo


ventos e chuvas

relâmpagos ou trovões

nada mudou tanto aquela terra  quanto o tempo  

do que havia ali antes


epílogo


o sono e o cansaço chegaram com


a sétima era

era a do esquecimento

acordado pelo barulho

feito por algum animal

ficou curioso e tentou se erguer

mas suas pernas não suportaram o peso

 da história

dos antepassados

e a sua própria  

ficou onde estava

deitado na grama

 talvez o sol o tenha enlouquecido  

teve visões de todas as eras

seus antepassados sorriam para ele

teve visões de uma deusa

e de luas opacas

de estrelas caídas

de sóis em ocaso

quis chorar  não conseguiu  

conseguiu um sorriso  hipócrita cínico e triste  

tentou olhar o horizonte

mas o que viu foram as pontas

de duas torres em ruínas  de uma terra em ruína  

olhou-as por um tempo

 agradecido  

e estirado sobre a grama verde e morna

tornou a adormecer



ilustração : ana betsa

             o mago (lápis sobre cartolina)

© do autor

             reprodução total ou parcial proibida