a primeira vez que a vi
ela estava sentada no meio fio
vestia uma túnica longa
e de cor indefinida
ela estava sentada no meio fio
vestia uma túnica longa
e de cor indefinida
era noite e a chuva tinha passado
tentando iniciar conversa
eu disse um oi
ela virou-se vagarosamente
e pude perceber o seu olhar
— bem
eu nunca havia visto tanta dor
em um olhar —
perturbado balbuciei
meu nome é branco
ela — ainda me fitando — sussurrou
o meu é melancolia
a lua surgiu entre as nuvens
algumas estrelas também
e enquanto eram refletidas
no asfalto molhado
ela começou a me contar
sobre sua vida
— vida desalento —
falou ter muitas irmãs
e que elas — em conseguindo um amigo —
transformavam-se em companheiras
inseparáveis e leais
contou-me muitas outras coisas
— coisas abatidas —
em contraponto
contei sobre mim
— eu era tão jovem então —
coisas inconsequentes alegres ingênuas
e assim
um elo foi se formando
transformando-nos em um estranho casal
e ela dizendo-se cansada
pediu-me que a carregasse
e o tempo foi passando tão rápido
eu aprendendo enquanto carregava
minha amiga nas costas
íntimos
aprendemos brincar
e nessa brincadeira
por vezes
ela me põe calado
eu — ao contrário —
jamais consegui fazê-la rir
mas tenho comigo
antes que finde o tempo
farei aqueles olhos brilharem
ao menos uma vez
me lembro disso tudo
pois nesta noite
estou andando por uma rua úmida
cujo asfalto reflete as luzes dos postes
— se por acaso
sua janela estiver aberta
e você olhar para fora
poderá ver
a silhueta de um patético quasímodo
mas não se assuste
é apenas um homem —
eu
que caminho carregando
uma velha amiga nas costas
percebendo que a cada dia
ela fica mais pesada
conto uma piada ela não ri
e corresponde
— deixando-me prostrado e tranquilo —
sussurrando incessantemente em meu ouvido
despertencimento
despertencimento
ilustração: Luc-Olivier Merson
© 2022 do autor